Sejam Bem-Vindos!

O Botequim é um espaço democrático e opinativo sobre os mais diversos assuntos, envolvendo a sociedade brasileira e o mundo.

Sejam Bem-vindos!

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Espaço Curtas: Eternamente Jovem

Faço 38 anos nesta próxima segunda. Acredito que, a cada ano conquistado, muitas coisas vem em nossas mentes, principalmente quanto ao fato daquela velha preocupação de se achar velho, isto é, aquela sensação de que as coisas estão mudando e que você continua estático, indiferente às novas sensações, às novas músicas, aos novos estilos comportamentais. É o conservadorismo que, a cada ano, vem tomando conta do ser, do pensamento, do modo de se vestir, de dançar, de ver as coisas, mas acho que isto não seja algo de todo ruim, apenas uma maneira inconsciente de superação, de crescimento. Portanto, o amadurecimento é algo que se conquista não só com a cultura de novos livros, de novos contos ou romances, mas, principalmente, com o enfrentamento dos desafios da vida.
Assim, nessa segunda-feira espero comemorar mais um ano de experiência com a mesma energia e empolgação da adolescência, mas com os pés no chão e a cabeça cada vez mais tranqüila. Essa forma de comportamento, acredito eu, seja a ideal para se buscar o caminho da felicidade, pois a experiência e a vontade de viver se unem numa confluência única que fazem do sujeito se dotar de uma magia única e irresistível, a magia da personalidade.
Parabéns a todos aqueles aniversariantes que comemoram mais um ano de vida sem a preocupação das rugas no espelho, mas sim com a preocupação de um possível aprendizado não compreendido.

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Espaço Curtas: As queimadas por todo o Brasil

Estou em Mato Grosso desde o dia 19/08, vim trabalhar e retornarei ao Rio de janeiro apenas no dia 31/08. O que mais me impressionou ao descer do avião em Cuiabá foi a visão fumacenta de toda a cidade causada pelas queimadas das redondezas, mas até então não fazia idéia da seriedade do problema. Segui viagem de ônibus até Vilhena, em Rondônia, aí pude perceber a gravidade da situação. Ao longo da BR que liga Cuiabá no Mato Grosso a Vilhena em Rondônia, os focos de queimadas são assustadores. Muita fumaça, pouca visibilidade na estrada tem provocado muitos acidentes com vítimas fatais. Também, nos hospitais, o problema se agrava, pois as maiores vítimas da pouca umidade são as crianças e os idosos. A impressão que dá é que foram propositalmente provocados, mas a pouca umidade do ar, talvez, seja o verdadeiro responsável, pois já faz tempo que não chove por aqui.
Ao consultar as notícias dos principais sites, vejo que a pouca umidade está em todo o Brasil.
Vamos torcer para que esse estado de secura passe logo e que as pessoas passem a se preocupar mais com a segurança de nossas matas.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Espaço Conto: Nos Cantos do Rio


O menino não teria mais de oito anos, fumava, bebia, discutia como gente grande. Do seu universo, era um ser estranho, não era criança, não era adulto. Sabia já como era o sexo, mas não tinha, ainda, o porte físico necessário, nem a criatividade para suportá-lo. Os hábitos eram de gente acostumada ao sofrimento, a pele e o sorriso escondiam um enigma sombrio. Coisa diferente, triste, ameaçadora... Que coitado! Foi a minha observação que fiz a respeito de Boa-vida, criança de rua nascida na rua, cujo apelido refletia certo escárnio, um deboche de quem vivia de baixo de uma marquise na Central do Brasil.
Boa-vida vivia do dia, da ação, da esperteza, não era ladrão não! Vendia balas, doces, era flanelinha, conselheiro, proseador, engraxate, jornaleiro, office-boy, guia turístico e até se intitulava professor. Sim, professor dos menores, aqueles, que como ele, já estavam abandonados na rua, sem família, sem carinho, sem ninguém. Tudo fruto do descaso, do esquecimento.
Pensamentos distantes de Goro, outro menino de rua, com seus oito anos, amigo de Boa-vida:
– Estou sentindo tanto frio!... E tenho também fome!... Que coisa..., outro dia uma mulher de saia grande que se dizia ser testemunha de Jeová me disse que seremos salvos e que iremos pra outra vida, não teremos mais fome nem frio, seremos amados e confortados. E que eu estarei ao lado do rei. Não compreendi muito bem, e na verdade, ainda não entendi. Estou a sofrer já faz tempo e nada me acontece. Hoje tive que bater a carteira de um otário grande e gordo, de bolso cheio e ar arrogante. Dizem que não é justo, mas eu me pergunto, por que muita gente tem casa boa e família, enquanto eu sofro e me ferro? Isso é justo? O que foi que fiz pra merecer isso? Desde menor e com os meus sete, já perdi a noção de grande e pequeno, e dizem por aí que sou ainda de menor, mas e o meu cigarro? Minha puta que me ama não fala nada disso. Diz que sou é homem e dos mais machos que existem!
No trânsito infernal do fim de expediente, pelas redondezas da Central, lá estavam Boa-vida e Goro sentados num banco imundo de praça, fumando um pito de cigarro. O olhar vago dos dois e a falta de perspectiva de futuro confluíam para uma imaginação perturbada, doentia e sofrida. Ambos observavam a multidão que iam e vinham de todos os lados e pra todas as direções. O pensamento de Boa-vida fluía por nuvens dispersas a enormes alturas. Imaginava como seria uma vida longe das ruas. Via-se imerso num mundo de conforto e segurança. Via-se, ao acordar, num quarto limpo e só seu, receber o sorriso e o afago de uma mãe; uma mãe sem rosto, presente apenas pelo vulto e pelos carinhos recebidos, pois desde muito cedo, tinha sido deixado na rua com a negra Zélia que o criou com a educação dada pela rua e o preparou para os desafios dos menos afortunados. Algo em Boa-vida, ainda, respirava..., era a alma carente de criança que reclamava seu contento, pois quando se é criança, mesmo já adulto precoce, sempre existirá algum indício que denuncie a fragilidade infantil.
Goro, pelo contrário, apesar de tanto sofrimento, não gostava muito de pensar em coisas boas, até porque nada era bom em sua vida - Faz ou não faz sentido?... Moleque realista, mais velho que Boa-vida, apenas dois anos. Aparentava ter lá seus dez anos bem vividos, e muito bem vividos, no sentido mais desafiador e mais indigno da condição humana. Aos cinco anos fugira de casa. Seu pai, um homem bruto e alcoólatra, espancava-o constantemente. Sua mãe, mulher ignorante e parideira, também não lhe dava a atenção necessária e sempre concordava com as decisões do marido. Resolvera, então, fugir. Pra bem longe!
Goro, de iniciou, instalou-se na Praça da Bandeira, mas logo foi tocado de lá por excesso de moradores. Seguiu então pra Central do Brasil, a velha estação de trens da cidade maravilhosa. Foi pelas adjacências da central, em alguma marquise de loja, que conheceu o Boa-vida e se tornaram grandes amigos.
Naquele momento, enquanto fumavam o já quase extinto pito de cigarro, foram interrompidos de seus transes e enxotados por um velho mendigo que reclamava seu direito naquela área. Não criaram caso, até porque Goro e Boa-vida compreendiam muito bem aquilo. O velho estava no seu direito. A lei das ruas protegia-o de qualquer invasão; um código de ética que por sinal muito bem respeitado.
O crepúsculo anunciava noite quente e movimentada, bem típica dos verões cariocas. Os dois seguiram gingando pelas estreitas ruas do centro do Rio em direção à Lapa...

– O quê vamo fazer na Lapa, Boa-vida?

– Lá tenho um irmão que quer te conhecer..., o Ceroula. – respondeu o Boa-vida.

O Ceroula era um moleque já grande e conhecido como o terror da Lapa. Negro, alto e magricelo. Aparência medonha. O apelido deu-se por usar uma ceroula na cabeça como boné, adorno que o deixava ainda mais sinistro.
Também era na Lapa onde Boa-vida se afogava no sexo prematuro, movido à caninha e cola. Conheceu noutro dia uma prostituta chamada Dalva, muito forte e sarará, cara de muitos homens, e cínica feito o diabo. Era com ela que o Boa-vida se acabava em prazer e era com ela que o menino buscava orientação. Apesar da Central ser sua jurisdição, quase todos os dias deixava o Goro por lá pra se encontrar já tarde, depois dos mais esfomeados, com a suarenta e pegajosa Dalva.
A apresentação de Goro ao Ceroula deu-se. Logo os dois se entenderam e caíram dentro da caninha barata oferecida pelo cortesão. O motivo da apresentação de Goro ia muito mais que uma simples bebedeira. Sabedor das histórias de Goro por Boa-vida, Ceroula encontrara seu par perfeito para aterrorizar as redondezas da Lapa. Então, durante a pândega, o Ceroula propôs o seu primeiro convite de união com Goro. O plano seria um assalto à mercearia do Joaquim Pinto, português avaro, odiado por muitos naquela região. Boa-vida, no entanto, desconhecia as verdadeiras intenções do Ceroula, e mesmo se soubesse não meteria o bedelho naquilo que não lhe dizia respeito.
À noite sem fim cedeu lugar ao raiar de um sol feliz e empolgante. O calor, desde cedo, já fazia transpirar os corpos inquietos e sem água há semanas. Boa-vida acabara de chegar da cama de Dalva; cigarro na boca, andar gingado, olhar feliz. Foi procurar Goro para o retorno à Central. Encontrou-o deitado enrolado com uns trapos próximo à marquise de uma loja de tecidos. Cutucou-o diversas vezes e percebeu que ainda estava bêbado em demasia. Resolveu sair gingando à procura de um cigarro e uma boa prosa.
Enfim, Goro despertou. Foi procurar o Ceroula pra confirmar o plano. Boa-vida ao avistá-lo assoviou de longe e fez sinal que esperasse. Goro parou, tirou um cigarro amassado da orelha e acendeu-o.

– Até que fim! Tava durmindo que nem um porco! Tá ainda bêbado? Vamo voltar pra lá pra Central?
– Irmão, temos um serviço, hoje, com o compadi Cerôla. É sopa na crista. Depois agente vamos – Respondeu Goro.

Boa-vida não gostou muito da idéia e resolveu ficar de fora. Não era o seu feitio. Não gostava de roubar ninguém. Caso fosse necessário, talvez, o necessário pro almoço, mas não gostava dessas coisas. Aconselhou Goro a cair fora, várias vezes já tinha dito que eles não precisavam disso. Disse também que já imaginava isso por parte do Ceroula.
Boa-vida procurou fazer algo durante todo o dia. Procurou almoço na casa de Dalva e se surpreendeu pela quantidade de homens que encontrou na sórdida cama. Voltou pensativo, não decepcionado. Já conhecia tudo na vida. Não amava Dalva..., claro que não. Mas, às vezes, parava pra pensar na sua vida...
O assalto haveria de ocorrer às 22:00 horas, horário de fechamento da mercearia. Goro e Ceroula sumiram a tarde toda. Boa-vida ficou por ali mesmo, resolveu, então, procurar o que fazer; ganhar uns trocados pras refeições futuras. Foi parar num sujo e lotado supermercado popular. Apresentava-se aos consumidores como ajudante. Apesar da ação trabalhista e educada de abordar os clientes, Boa-vida recebeu muitos olhares desconfiados e preconceituosos, mesmo assim, já estava acostumado. Não delegou muita importância e acabou conseguindo umas patacas pra janta do dia.
Satisfeito com os cobres recebidos, resolveu procurar Goro. Próximos aos arcos da Lapa, Goro e Ceroula proseavam divertidamente. Boa-vida se aproximou:

– Pra que horas vai o serviço?
– Mano Boa-vida não quer ajudar? – indagou o Ceroula.
– Não, tô fora, não quero barulho.
– Cualé Boa-vida, vai deixar teu mano na onça? – agora era a vez de Goro.

Goro e Ceroula insistiram tanto que Boa-vida, mesmo sem querer, consentiu participar da ofensiva. Faria o papel de último cliente da noite. Apesar da roupa suja, que denunciava seu domicílio, Boa-vida sabia ser educado nas horas de necessidade. Era a pessoa certa pra desencadear o assalto ao português.
Já próximo das dez, Boa-vida pensou melhor e quase deu pra trás no plano. Pensou que se negasse a participar, talvez, caísse no descrédito do Ceroula. Coisa que era inadmissível nos regulamentos da rua.
Assim foi o Boa-vida entrar lá pelas dez horas na mercearia de Joaquim Pinto. O português sobressaltou-se de imediato. Conhecia de longe a presença de gente da rua.

– O que você quer aqui? – perguntou rispidamente o lusitano.
– Boa noite senhor? Estou procurando umas conservas pra sopa da minha tia. Ela prefere a marca cica, o senhor tem dessa marca aqui?

O português ainda ficou fitando Boa-vida desconfiado, na verdade, surpreendeu-se com a educação e com a pergunta de sentido do moleque.

– Acho que tenho ali no alto. Espere onde está que vou procurar – disse com sotaque inconfundível.

No momento que Joaquim Pinto deu as costas, Goro e Ceroula entraram violentamente na mercearia anunciado o assalto. Fecharam num piscar de olhos as portas e lá dentro ficaram, a sós, com o português. Assustado, Joaquim Pinto não falava nada. Estava, na verdade, já calculando o prejuízo que teria. Olhava profundamente pra cara do Goro e do Ceroula; não reconhecia o primeiro, mas o segundo já sabia que conhecia de outros carnavais.
Não houve nenhum tipo de agressão física ao português. Os três recolheram, num saco de estopa, a féria do dia, maços de cigarros, enlatados, bebidas e tudo que agradasse aos olhos. O saldo com certeza, uma boa soma. Só que na saída, motivados pelo sucesso do serviço, não perceberam a aproximação de dois seguranças de comércio, fortemente armados. Os três foram crivados de balas pelas costas. Não tiveram tempo nem de correr. Acho que nem perceberam o fracasso imediato dos seus planos.
Morreram três meninos de rua, com histórias diferentes, mas com os mesmos destinos.
Ao caso não foi dado tanta importância na cidade maravilhosa, pois a prova do crime estava com eles. Pra sociedade eram apenas ladrões sem futuro, não eram crianças. Eram monstros, assassinos, surgidos e criados na sarjeta, algo fora da realidade. Pras pessoas, são coisas que foram criadas sabe lá onde, mas que residem a cada dia e em maior número nos cantos do Rio.

(Contos de Botequim – Silfra Doval – 8 de maio de 2006).

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Espaço Conto: As máquinas caça-níqueis


Arilson trabalhava vendendo balas e doces em porta de colégio, pois não tinha emprego fixo. O que conseguia dava pelo menos pra comprar a cesta básica do mês, quando não faltava dinheiro inexplicavelmente. Fumava, bebia, vícios de gente comum, mas quando não se tem renda fixa, pode levar a falta de comida na dispensa limitada. Apesar de ganhar pouco e sustentar os vícios humanos do mundo, Arilson não se continha quando avistava uma máquina caça níqueis, aquelas dos desprezíveis mafiosos que controlam os bolsos dos miseráveis ingênuos do Rio de Janeiro.
O bar da Elisabete, bar festeiro das sextas e sábados, as atendentes decotudas, o som nas alturas, a boa cerveja gelada e as malditas máquinas caça-níqueis fazem do ambiente o ideal para os farristas sem demais exigências.
Arilson, nas sextas ao fim de tarde, estacionava não o seu carro, mas a sua carrocinha de balas e doces e pedia a primeira da noite sem fim. Bebia, fumava, piscava para dona do estabelecimento e sem a mínima consciência jogava todo o dinheiro ganho do dia nas máquinas que diziam pagar bem. Achava ser um homem de sorte, e mais que isso, esperto e corajoso.
O exemplo de Arilson era apenas a repetição de outros tristes exemplos. Conheci, também, um cara chamado Luís caju, sujeito negro que parecia azul. Esse tal de Luís caju chegou, num sábado de festa, no bar dizendo que iria quebrar a banca, trazia consigo algo em torno de duzentos reais, muito dinheiro para quem trabalha como servente de pedreiro. Começou a jogar e a ganhar, a cada vitória triplicava as apostas e até quadruplicava com a arrogância dos espertos e, ao mesmo tempo, a inocência dos bobos. No fim, o pobre coitado após curtir momentos de esperteza e supremacia estava liso, sem um tostão no bolso, e pra piorar a situação, devendo a Elisabete.
Outro dia, chegou um sujeito estranho, cara de bandido, jogou cinqüentinha e perdeu logo. Furioso e sem dinheiro, o sujeito levantou a máquina e pôs de ponta cabeça, caíram muitas moedas, até a mais que tinha perdido. Rapou tudo e caiu fora, mas pra seu azar, Zé goela doce, cachaceiro oriundo da Cidade de Deus, reconheceu o salafrário. Noutro dia, dizem os freqüentadores do bar que presenciaram o fato, o malandro não existia mais. Numa tocaia, fora crivado de balas pelas bandas de Vargem Grande.
Existem, também, os verdadeiros espertos, aqueles que conhecem a máquina como a palma da mão, após muito dinheiro deixado. Esse era o caso de Otavinho de Assis. Sem família, já há muito tempo deixada, boêmio, trabalhador e jogador profissional calado. Conhecedor do momento certo, gastava de início seus poucos reais em bebida e música, principalmente em música; a boa e velha máquina de música, aquela dos clássicos aos mais degradantes estilos musicais. No momento certo, de desistência explícita, lá ia Otavinho, pouco dinheiro, jogava certo no da vez e lá tirava a boa soma para a noite sem fim. Muitos já esperavam a performace de Otavinho, de bocas abertas, esperavam apenas um vacilo para copiá-lo em busca dos níqueis salvadores.
Numa bela noite de dezembro, calor do Rio, a cerveja, o samba, as mulheres, a poesia cachaceira, lá estava Otavinho; camisa florida, boné branco limpinho, calça preta bem passada. A máquina de som, bem alta, tocava Vinícius. Muitos malandros com dinheiro se acotovelavam nas máquinas para especularem a aposta certa. As horas passam, as máquinas engolem, engolem, engolem muitos centavos; os bolsos esvaziam. Otavinho, cheio de cerveja, vercejava coisas belas em tom de alegria. Elisabete, mulher da noite e festeira, abria os dentes esburacados prenunciando o lucro da noite do boêmio. E lá ia o malandro, os poucos centavos era riso de alguns, já para outros, já sabendo do acontecer era motivo de aflição. Retirava o que a máquina podia pagar, quase a metade do que todos tinham perdido. Foi ai que um malandro de fora, achando que tinha sido enrolado, sacou uma arma e mandou Otavinho entregar os níqueis ganhos. Com a cabeça festeira em sua casa de alegria, Otavinho achou engraçado, mas somente tomou consciência quando era carregado pra ambulância na direção do Rocha Faria. Faleceu, duas horas depois, tomou dois tiros no peito. O malandro, pobre coitado, recolheu como um animal os níqueis do chão – que cena! –. Desprezo total pela vida alheia, coisa estranha. O saldo da morte tinha sido em torno de trezentos reais, muito pouco pela vida de uma pessoa que tinha muito a ensinar, a manha de vencer as malditas máquinas caça-níqueis.

Contos de Botequim - Silfra Doval, Taubaté, 17 de setembro de 2005 -

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

Espaço crônica do dia: Uma vez magro, sempre magro


Passei em frente a uma loja de roupas qualquer, num shopping qualquer do Rio, e resolvi entrar para dar uma olhadinha nas calças. Procurei as que mais me agradava e resolvi vesti-las para ver se ficava bacana. Mas para minha surpresa, perdi quase uma hora só experimentando vários números, pois o meu velho nº 40 já estava há muito defasado, tendo me caído bem, para o meu espanto, o nº 44. Foi aí que caí em meditação; será que eu estou gordo?
Bem, quem me conhece sabe que sempre fui magro, mas muito magro. Na minha infância e adolescência eu era um magro de uma magreza não muito bela, pra dizer que era bem feia, mas nunca fui um magro doente, isso é a única coisa que posso me gabar, pois sempre fui de comer muito pouco, nunca a gula me excitou os ânimos, até por que nunca exigi do meu corpo atividade que justificasse repetir um prato fundo de comida, portanto quem me conhece sabe muito bem disso.
Já quando entrei no exército, passei de uma magreza inocente, fruto do pouco uso do corpo, para uma magreza mais aerodinâmica..., calma que eu vou explicar. Quero dizer que após a minha entrada nas forças armadas, passei a ter um corpo mais resistente, mais, vamos dizer, ‘duro’, fruto dos exercícios físicos diários durante os meus quase quatorze anos de caserna, portanto era um magro, como sempre fui, só que com mais vitalidade, mais resistência, mais dinamismo, isto é, aparentemente um magro esbanjando saúde e muita potência.
Agora o problema todo está nos dias de hoje. Devido a minha saída do exército, junto com o comodismo de minha nova vida ociosa e os exercícios que faço constantemente com a cevada, cheguei à conclusão que não sou o mesmo magro de sempre, uns até afirmam que estou um pouco mais gordinho. É pra ficar alegre? Olhando no espelho continuo o mesmo, mas talvez o queixo que sempre foi pequeno, agora já esteja imperceptível na minha discreta papeira. E pra piorar, muita gente diz que o problema todo é a barriga! Só que, quando me deparo com uma infâmia dessas, digo que não engordei nada e que o problema não é barriga coisa alguma, continuo o mesmo magro de sempre, só que com outro nome..., um magro redondo! Alguns engraçadinhos dizem que é redondo por causa de uma marca de cerveja! Não tem problema, pois acho que eles entenderam o que eu quis dizer.
Então, acho que engordar eu não engordei! O que aconteceu foram algumas alterações nas minhas extremidades, principalmente no quadril, pois alguns amigos meus, aqueles que me conhecem desde pequeno, dizem que o dia que eu ficar gordo, talvez seja doença ou algum trabalho muito bem feito. Portanto, quem me conhece há muito tempo não acredita na aquisição de verdadeiros quilos e na adoção de uma silueta mais larga por minha parte. O que eu digo pra eles é que não acredito em milagres, mas nessa vida tudo pode acontecer, até coisas inexplicáveis, ou melhor, coisas que tem explicação, mas muita gente não quer acreditar, até por que isso já é outra história. Então, digo pra eles que continuo o mesmo magro de sempre, só que em outra fase. A fase do magro redondo. Mas voltando às minhas calças, só sei que levei duas quarenta e quatro. E olha que ficaram justinhas!

sexta-feira, 13 de agosto de 2010

Espaço Ponto de Vista: O debate dos candidatos ao Governo do Rio


Ontem eu assisti boa parte do debate, promovido pela Rede Bandeirantes, dos candidatos ao governo do Estado do Rio de Janeiro. Participaram do evento: Sérgio Cabral Filho, do PMDB, Fernando Gabeira, do PV, Fernando Peregrino, do PR, e Jefferson Moura, do PSOL. Como sempre, os candidatos se limitaram a tecer um discurso não muito claro sobre os seus possíveis planos de governo, até porque, o tempo de cada um se resumia apenas a quarenta e cinco segundos, muito pouco para aqueles que não têm o dom da oratória. Portanto, a curiosidade maior do debate foram as acusações que tiveram como alvo maior o candidato do PMDB e atual Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral Filho. O que se viu fui uma artilharia pesada sobre o candidato do PMDB. De um lado, o candidato do PSOL administrava o discurso da perfeição, do bom garoto, apontou os possíveis podres da administração de Sérgio Cabral e seu discurso se pautou principalmente em favor da saúde e da educação. Não pode, é claro, explicar com mais detalhes como fará para ressuscitar a saúde e a educação do Rio, como nenhum deles o fez, mas de uma forma geral se saiu bem, até porque era nítida a sua aliança com o candidato Fernando Peregrino, contra Cabral e Gabeira.
O candidato Fernando Peregrino tem o apoio do ex-governador do Rio, o Garotinho, que ninguém sente saudade. Acho que foi por isso que, antes mesmo do candidato expor seu programa, não me interessei muito pelo seu discurso. Peregrino atacou Cabral e Gabeira e claramente estava aliado (no debate) com o candidato Jefferson Moura. De concreto, o seu discurso foi voltado principalmente para a educação, citando até as obras memoráveis de Darcy Ribeiro – os CIEPS – no governo Brizola, mas, a meu ver, não me empolgou.
O experiente Fernando Gabeira adotou um discurso lúcido. Nas suas réplicas, em nenhum momento baixou o nível do seu pensamento, pode até não ter sido muito claro em seus planos, até porque nenhum foi, mas em minha opinião foi o melhor do debate. Como os outros, atacou Sérgio Cabral que vendido por todos os lados, apenas se prestou a se defender das acusações. Gabeira agiu estrategicamente, já que Cabral é o seu maior adversário e representa a continuação do embelezamento do Rio, ou melhor, o mascaramento da pobreza e da miséria. É uma espécie de ilusão para que o rico se sinta confortável durante a Copa e as Olimpíadas. É o varredor da sujeira para debaixo do tapete. Afinal, é uma forma de governar, não é mesmo?
Já o candidato à reeleição, Sérgio Cabral Filho, como já disse, limitou-se apenas a se defender das acusações, ou melhor, não respondeu as acusações formuladas pelos seus adversários e o momento mais curioso foi quando os assessores do peemedebista solicitaram um tempo para a réplica a respeito das acusações de superfaturamento das UPAs, acusação feita pelo candidato Fernando Peregrino. De um lado, Fernando Gabeira esbravejava, sem os microfones, sobre o tempo concedido ao candidato do PMDB e de outro, Cabral não soube lidar com o assunto, simplesmente não explicou nada.
De uma forma geral o debate, o primeiro de uma série de vários, foi bom, pois podemos perceber que a essência não muda, é a mesma, isto é, temos que analisar as propostas e acreditar nelas. Enquanto o nosso país não tomar ares de terra civilizada, ou melhor, enquanto não for editada a lei que obrigue os candidatos a cumprir as suas promessas de campanha, ficaremos nesse lengalenga e à mercê da aparência e da oratória. Se o candidato for ator, aí é que estaremos perdidos.

quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Espaço Ponto de Vista: MEC envia às escolas públicas livro que narra estupro


Todos os dias faço uma rápida passagem pelos principais sites de notícias para ficar ciente dos principais problemas de nossa sociedade e do mundo. Hoje, quinta-feira, uma notícia me chamou a atenção; ‘MEC envia a escolas publicas livro que narra estupro’, exposta na Folha.com. O nome do livro é ‘Teresa, que esperava as uvas’, de Monique Revillion.
Como educador, caí em reflexão a respeito do possível problema. E surgiu a grande pergunta: Há algum problema em se trabalhar com relatos de violência em livros escolares?
Eu sinceramente não li o livro e segundo os responsáveis (governo e autora), o relato de violência serve para que os alunos reflitam sobre a violência de nossa sociedade. Segundo o site, as cenas de violência estão presentes no conto "Os Primeiros que Chegaram", que narra, do ponto de vista da criminosa, um sequestro cometido por um casal. As vítimas são torturadas. Há frases como "arriou as calças dela, levantou a blusa e comeu ela duas vezes" e "[Zonha, o criminoso] deu um tiro no olho dele. [...] Ele ficou lá meio pendurado, com um furo na cabeça."
Como professor, afirmo que a questão é muito complicada. Esse problema se parece um pouco com as cenas de violência e nudez gratuita das famigeradas novelas e que são transmitidas e assistidas por adultos e crianças. Pelos trechos do livro, exposto acima, volto a afirmar que o problema é bem mais sério, pois o tema violência é muito traumatizante em nossa sociedade. O nosso país é um dos mais violentos do mundo e isso significa que não há necessidade de se trabalhar com relatos de violência em nossos livros didáticos, se a cada esquina ela está bem presente.
Acho uma grande falácia essa coisa de mostrar algo que já está visível em nosso meio, como por exemplo, o comportamento homossexual, o estuprador, o assassino, a prostituta para que a sociedade reflita a respeito, mas não quero, também, mascarar a realidade; mostrar apenas coisas belas em detrimento dos reais problemas. O problema aqui é a violência gratuita. No Romantismo, por exemplo, uma cena de sexo não admitia os pormenores do ato, e mesmo assim causava a mesma catarse. Já no Realismo, os pormenores são essenciais, já que esta última escola representava muito mais uma espécie de perseguição política e comportamental. Voltando ao problema, pra mim, o educador que escolheu esse livro para ser trabalhado em sala de aula se esqueceu de uma coisa importante: não adianta nada você trazer pra sala de aula uma possível realidade assustadora, com palavras chulas e violentas se o educador e os alunos não estiverem preparados e conscientes do que estão fazendo. Eu ficaria bem tranqüilo se o nível de nossa educação já estivesse num patamar de primeiro mundo, aí, talvez, esse tipo de material não ameaçasse tanto o comportamento de nossos jovens.
Não sei se fui compreendido. Não estou querendo dizer que depois desse livro as crianças vão sair por ai tentando estuprar umas as outras, mas só acho que esse tipo de material foi escolhido por outras questões – apadrinhamento, descuido dos educadores, com outros propósitos maléficos – mas menos com o objetivo de reflexão.
Por que se trabalhar a violência com palavras tão chulas e assustadoras? Os nossos jornais estampam todos os dias notícias de crimes dos mais diversos, publicam imagens das mais terríveis que não precisam de palavras para serem bem compreendidas, portanto os nossos alunos não precisam de mais violência, principalmente as vindas do governo – para refletirem sobre a realidade. O que todos nós queremos é que o governo nos atenda com cultura ou, então, nos dê o caminho de como conquistá-la, pois nada nesse mundo vem de graça.
Que frases como essas, "arriou as calças dela, levantou a blusa e comeu ela duas vezes" e "[Zonha, o criminoso] deu um tiro no olho dele. [...] Ele ficou lá meio pendurado, com um furo na cabeça.", fiquem apenas nesse livro para que os interessados comprem. Nossos alunos não precisam desse tipo vocabulário e muito menos dessa atmosfera já traumatizante do dia-a-dia.

quarta-feira, 11 de agosto de 2010

Espaço Ponto de Vista: A frouxidão de nossas Forças Legais


Gostaria de comentar algumas práticas incompreensíveis, pra não dizer um tremendo desrespeito ao Estado de Direito e a segurança pública, relativas à frouxidão de nosso sistema penal. No último domingo, assistia eu ao programa ‘Fantástico’ da Rede Globo de televisão quando foram mostradas as imagens do bandido Elizeu Felício de Souza, o Zeu, – o assassino de Tim Lopes – armado até os dentes no complexo do Alemão. O bandido foi condenado a vinte e três anos de prisão, mas graças à concessão do regime semiaberto, concedido após o cumprimento de cinco anos e vinte e cinco dias de bom comportamento, o elemento conseguiu ‘sair’ da prisão pelas portas da frente, numa prática cada vez mais freqüente, principalmente quando das concessões de indultos de datas comemorativas.
Mas agora aqui vale uma reflexão. O Estado democrático de direito assegura a todos os cidadãos a igualdade de direitos e a garantia, com raríssimas exceções, à vida, à liberdade e a igualdade. E essas prerrogativas são tão bem enfáticas que algumas, a meu ver, extrapolam o bom senso e a razoabilidade, como exemplo, cito o direito à liberdade condicional concedido ao bandido Zeu, um assassino com altíssimo grau de periculosidade. É um absurdo que pessoas como o torturador e assassino de Tim Lopes recebam tratamento igualitário a um simples ladrão de carro ou a um assaltante a mão armada. E os indultos concedidos aos detentos? No último domingo foi o dia dos pais e acredito que muitos marginais não regressaram ao presídio para prosseguirem com as suas penas, portanto são benefícios que terão quer ser rapidamente modificados e ajustados à realidade brasileira para assim evitarem que pessoas, pra não dizer monstros, fiquem a soltas por aí fazendo o que bem entenderem. Foi assim com Zeu e é assim com muitos outros.
Ainda na mesma reportagem, um juiz, não lembro bem, disse que muitos profissionais que trabalham na análise comportamental dos detentos sofrem pressões, até ameaças de morte, para deferirem o regime de soltura dos marginais... É um absurdo! Parece mesmo que os bandidos mandam mais que os poderes constituídos.
Bem, diante disso é dever da sociedade brasileira cobrar de nossos representantes as modificações necessárias em nosso sistema penal para que absurdos como a soltura de Zeu não aconteçam mais, mesmo que para isso, questões como o direito à vida, à liberdade e a igualdade sejam profundamente meditados, não com o ranço do regime militar, mas com inteligência e lucidez em conformidade com a realidade de nossa sociedade. O assassino de Tim Lopes tem o mesmo direito à liberdade que eu e você? O traficante Zeu é tão igual em direitos como você, chefe de família? Lembre-se que, antes de qualquer posicionamento, ele, o traficante, optou pelo crime. E a vida? Assunto mais delicado. O torturador e assassino de Tim Lopes tem também direito à vida? Lembre-se que o bandido e sua corja não toleraram a vida do jornalista e de muitos outros não conhecidos. São questões a serem discutidas e meditadas por toda a nossa sociedade para que medidas mais arrojadas sejam implementadas com o fito de tratar com severidade e aplicação de verdadeiro corretivo àqueles que estão muito à margem da sociedade, os marginais de toda a espécie.
Ao fim da reportagem, o secretário de segurança pública do Rio de Janeiro, José Mariano Beltrame, afirmou que está fazendo o possível para capturar o bandido, foragido desde 2007, mas reconheceu que não é fácil agir no complexo de favelas mais temido do Rio de Janeiro, o complexo do alemão. Segundo Beltrame, “A gente acompanha e procura prender essas pessoas fora daquele contexto, porque dentro daquele contexto são ações muito complexas. Vidas de inocentes correm sério risco de serem debeladas em função de uma ação da polícia lá”.
Ora secretário, eu particularmente tenho muito respeito pela sua história em outras passagens como articulador da segurança pública, mas acho eu na minha santa ignorância que um bandido não iria ficar a três anos fincado dentro de uma favela, portanto se a polícia não consegue agir dentro do complexo do alemão, quem é que agirá? Ações da polícia, secretário, não significam apenas tiros e incursões. Cadê o serviço de inteligência? Cadê os policiais disfarçados dentro da favela?
A minha última esperança são as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP). Nome bonito que significa ‘contenção da selvageria’ (o cacete deve comer lá dentro). Talvez, assim, o complexo do alemão seja ‘dominado’ pelas forças legais e o tal bandido Zeu seja preso. Tenho certeza que até a copa de 2014 tudo esteja resolvido, pois o que está em jogo não é a nossa segurança, mas sim a segurança do gringo endinheirado.

terça-feira, 10 de agosto de 2010

Espaço Momentos Antológicos: Jorge Amado, 'Dona Flor e Seus Dois Maridos'


Os Momentos antológicos da literatura brasileira significam todas aquelas passagens que marcaram uma obra literária. Para inaugurar esse novo espaço em “O Botequim”, separei dois trechos memoráveis da obra ‘Dona Flor e seus Dois Maridos, de Jorge Amado; e se trata logo dos capítulos 1 e 2, a morte do malandro Vadinho em pleno carnaval baiano, vestido de baiana e com uma imensa mandioca por debaixo das pernas! Vale a pena conferir é maravilhoso!

Capítulo 1

Vadinho, o primeiro marido de dona Flor, morreu num domingo de carnaval, pela manhã, quando, fantasiado de baiana, sambava num bloco,
na maior animação, no largo dois de julho, não longe de sua casa. Não
pertencia ao bloco, acabara de nele misturar-se, em companhia de mais
quatro amigos, todos com traje de baiana, e vinham de um bar no cabeça onde o uísque correra farto à custa de um certo Moysés Alves, fazendeiro de cacau, rico e perdulário.
O bloco conduzia uma pequena e afinada orquestra de violões e
flautas; ao cavaquinho, Carlinhos Mascarenhas, magricela celebrado nos
castelos, ah! um cavaquinho divino. Vestiam-se os rapazes de ciganos e
as moças de camponesas húngaras ou romenas; jamais, porém, húngara ou
romena ou mesmo búlgara ou eslovaca rebolou como rebolavam elas,
cabrochas na flor da idade e da faceirice.
Vadinho, o mais animado de todos, ao ver o bloco despontar na
esquina e ao ouvir o ponteado do esquelético Mascarenhas no cavaquinho
sublime, adiantou-se rápido, postou-se ante a romena carregada na cor,
uma grandona, monumental como uma igreja - e era a igreja de São
Francisco, pois se cobria com um desparrame de lantejoula doirada -,
anunciou:
- Lá vou eu, minha russa do tororó...
O cigano Mascarenhas, também ele gastando vidrilhos e miçangas,
festivas argolas penduradas nas orelhas, apurou no cavaquinho, as
flautas e os violões gemeram, Vadinho caiu no samba com aquele exemplar
entusiasmo, característico de tudo quanto fazia, exceto trabalhar.
rodopiava em meio ao bloco, sapateava em frente à mulata, avançava para
ela em floreios e umbigadas, quando, de súbito, soltou uma espécie de
ronco surdo, vacilou nas pernas, adernou de um lado, rolou no chão,
botando uma baba amarela pela boca onde o esgar da morte não conseguia
apagar de todo o satisfeito sorriso do folião definitivo que ele fora.
Os amigos ainda pensaram tratar-se de cachaça, não os uísques do
fazendeiro: não seriam aquelas quatro ou cinco doses capazes de possuir
bebedor da classe de Vadinho; porém toda a cachaça acumulada desde a
véspera ao meio-dia quando oficialmente inauguraram o carnaval no bar
triunfo, na praça municipal, subindo toda ela de uma vez e derrubando-o
adormecido. Mas a mulata grandona não se deixou enganar: enfermeira de
profissão estava acostumada com a morte, freqüentava-a diariamente no
hospital. Não, porém, tão íntima a ponto de dar-lhe umbigadas, de
pinicar-lhe o olho, de sambar com ela. Curvou-se sobre Vadinho,
colocou-lhe a mão no pescoço, estremeceu, sentindo um frio no ventre e
na espinha:
- Tá morto, meu deus!
Outros tocaram também o corpo do moço, tomaram-lhe do pulso,
suspenderam-lhe a cabeça de melenas loiras, buscaram-lhe o palpitar do
coração. Nada obtiveram, era sem jeito. Vadinho desertara para sempre do
carnaval da Bahia.


Capítulo 2

Foi um rebuliço no bloco e na rua, um corre-corre pelas redondezas, um deus- nos-acuda a sacudir os carnavalescos - e ainda por cima a escandalosa Anete, professorinha romântica e histérica, aproveitou a boa oportunidade para um chilique, com pequenos gritos agudos e ameaças de desmaio. Tôda aquela representação em honra do dengoso Carlinhos Mascarenhas, por quem suspirava a melindrosa de faniquito fácil - dizendo-se ela própria ultra-sensível, arrepiando-se como uma gata quando êle dedilhava o cavaquinho. Cavaquinho agora silencioso, pendendo inútil das mãos do artista, como se Vadinho houvesse levado consigo para o outro mundo seus derradeiros acordes. Veio gente correndo de todos os lados, logo a notícia circulou pelas imediações, chegou a São Pedro, à Avenida Sete, ao Campo Grande, arrebanhando curiosos. Em tôrno ao cadáver reunia-se uma pequena multidão a acotovelar- se em comentários. Um médico residente em Sodré foi requisitado e um guarda-de-trânsito sacou de um apito e nele soprava sem parar como a advertir a cidade inteira, a todo o Carnaval, do fim de Vadinho. Pois se é Vadinho, coitadinho dêle !", constatou um careta, com sua mascara de meia, perdida a animação. Todos reconheciam o morto, era largamente popular, com sua alegria esfuziante, seu bigodinho recortado, sua altivez de malandro, benquisto sobretudo nos lugares onde se bebia, jogava, e farreava; e ali, tão perto de sua residência, não havia quem não o identificasse. Outro mascarado, êste vestido de aniagem e coberto com uma cabeçorra de urso, varou o cerrado grupo, conseguiu aproximar-se e ver. Arrancou a máscara deixando exposta uma cara aflita, de bigodes caídos e crânio careca e murmurou:
- Vadinho, meu irmãozinho, que foi que te fizeram?
"Que foi que deu nêle, de que morreu?" perguntavam-se uns aos outros, e havia quem respondesse: "foi cachaça", numa explicação por demais fácil para tão inesperada morte. Uma velha curvada parou também, deu sua olhadela, constatou:
- Tão moderno ainda, por que morrer tão môço?
Perguntas e respostas cruzavam-se, enquanto o médico colocava o ouvido sôbre o peito de Vadinho, numa constatação final e inútil. "Estava sambando, numa animação retada, e sem avisar nada a ninguém, caiu de lado já todo cheio da morte" - explicou um dos quatro amigos, curado por completo da cachaça, de súbito sóbrio e comovido, meio sem jeito nas roupas femininas de baiana, as faces vermelhas de carmim, fundas olheiras negras, traçadas com cortiça queimada, sob os olhos. O fato de estarem fantasiados de baiana não deve levar a maliciar-se sôbre os cinco rapazes, todos eles de macheza comprovada. Vestiam-se de baianas para melhor brincar, por farsa e molecagem, e não por tendência ao efeminado, a suspeitas esquisitices. Não havia chibungo entre eles, benza Deus. Vadinho, inclusive, amarrara sob a anágua branca e engomada, enorme raiz de mandioca e, a cada passo, suspendia as saias e exibia o troféu descomunal e pornográfico fazendo as mulheres esconderem nas mãos o rosto e o riso, com maliciosa vergonha. Agora a raiz pendia abandonada sôbre a coxa descoberta e não fazia ninguém rir. Um dos amigos veio e a desatou da cintura de Vadinho. Mas nem assim o defunto ficou decente e recatado, era um morto de Carnaval e não exibia sequer sangue de bala ou de facada a escorrer-lhe do peito, capaz de resgatar seu ar de mascarado. Dona Flor, precedida, é claro, por dona Norma a dar ordens e a abrir caminho, chegou quase ao mesmo tempo que a polícia. Quando despontou na esquina, apoiada nos braços solidários das comadres, todos adivinharam a viúva, pois vinha suspirando e gemendo, sem tentar controlar os soluços, num pranto desfeito. Ao demais, trajava o robe caseiro e bastante usado com que cuidava do asseio do lar, calçava chinelas cara-de- gato e ainda estava despenteada. Mesmo assim era bonita, agradável de ver- se: pequena e rechonchuda, de uma gordura sem banhas, a côr bronzeada de cabo-verde, os lisos cabelos tão negros a ponto de parecerem azulados, olhos de requebro e os lábios grossos um tanto abertos sôbre os dentes alvos. Apetitosa, como costumava classificá-la o próprio Vadinho em seus dias de ternura, raros talvez, porém inesquecíveis. Quem sabe, devido às atividades culinárias da espôsa, nesses idílios Vadinho dizia-lhe "meu manue de milho verde, meu acarajé cheiroso, minha franguinha gorda", e tais comparações gastronômicas davam justa idéia de certo encanto sensual e caseiro de dona Flor a esconder-se sob uma natureza tranqüila e dócil. Vadinho conhecia-lhe as fraquezas e as expunha ao sol, aquela ânsia controlada de tímida, aquêle recatado desejo fazendo-se violência e mesmo incontinência ao libertar-se na cama. Quando Vadinho estava de veia, não existia ninguém mais encantador e nenhuma mulher sabia resistir-lhe. Dona Flor jamais conseguira recusar-se a seu fascínio nem mesmo se a tanto se dispunha cheia de indignação e de raiva recentes. Pois, em repetidas ocasiões, chegara a odiá-lo e a arrenegar o dia em que unira sua sorte à do boêmio. Mas andando agoniada, ao encontro da intempestiva morte de Vadinho, dona Flor ia zonza, vazia de pensamentos, de nada se recordava, nem dos momentos de densa ternura, menos ainda dos dias cruéis, de angústia e solidão, como se ao expirar ficasse o marido despojado de todos os defeitos ou como se não os houvesse possuído em "sua breve passagem por este vale de lágrimas". Foi breve sua passagem por êsse vale de lágrimas", pronunciou o respeitável professor Epaminondas Souza Pinto afetado e afobado, tentando cumprimentar a viúva, dar-lhe os pêsames, antes mesmo dela chegar junto ao corpo do marido. Dona Gisa, também professôra e até certo ponto também respeitável, conteve o açodamento do colega e conteve o riso. Se em verdade fôra breve a passagem de Vadinho pela vida – vinha de completar trinta e um anos -, para ele, dona Gisa bem o sabia, não fôra o mundo vale de lágrimas e, sim, palco de frases, engodos, embustes e pecados. Alguns dêles aflitos e confusos, sem dúvida, submetendo seu coração a árduas provas, a agonias e sobressaltos: dívidas a pagar, promissórias a descontar, avalistas a convencer, compromissos assumidos, prazos improrrogáveis, protestos e cartórios, bancos e agiotas, caras amarradas, amigos esquivando-se, sem falar nos sofrimentos físicos e morais de dona Flor. Porque, considerava dona Gisa em seu português arrevesado - era vagamente norte-americana naturalizara-se e se sentia brasileira mas o diabo da língua ah! não conseguia dominá-la -, se houvera lágrimas na breve passagem de Vadinho pela vida, elas tinham sido choradas por dona Flor e foram muitas, davam de sobra para o casal. Diante de tão súbita morte, dona Gisa não pensava em Vadinho senão com saudade: era-lhe simpático, apesar de tudo; possuía um lado gentil e cativante. Nem por isso, no entanto, nem por ele encontrar-se ali, no Largo Dois de Julho, morto, estendido na rua, vestido de baiana, iria ela de repente santificá-lo, torcer a realidade, inventar outro Vadinho feito de um só pedaço. Assim explicou a dona Norma, sua vizinha e íntima, mas não obteve da parceira o esperado apoio. Dona Norma muitas vêzes dissera as últimas a Vadinho, brigava com ele, pregava-lhe sermões monumentais, chegara um dia a ameaçá-lo com a polícia. Naquela hora derradeira e aflita, porém, não desejava comentar as predominantes e desagradáveis facêtas do finado, queria apenas gabar seus lados bons, sua gentileza natural, sua solidariedade sempre pronta a manifestar-se, sua lealdade para com os amigos, sua indiscutivel generosidade (sobretudo se a praticava com o dinheiro alheio), sua irresponsável e infinita alegria de viver. Aliás, tão ocupada em acompanhar e socorrer dona Flor, nem tinha ouvidos para Dona Gisa com sua dura verdade. Dona Gisa era assim: a verdade acima de tudo, por vêzes a ponto de fazê-la parecer áspera e inflexível; talvez numa atitude de defesa contra sua boa fé, pois era crédula ao absurdo e confiava em todo mundo. Não, não relembrava os malfeitos de Vadinho para criticá-lo ou condená-lo, gostava dêle e com freqüencia perdiam-se os dois em longas prosas, dona Gisa interessada em apreender a psicologia do submundo onde Vadinho se movimentava, ele a contar-lhe casos e a espiar-lhe no decote do vestido o nascer dos seios pujantes e sardentos. Talvez dona Gisa o entendesse melhor que dona Norma, mas, ao contrário da outra, não lhe descontava sequer um defeito, não ia mentir só por que ele morrera. Nem a si própria dona Gisa mentia, a não ser quando isso se fazia indispensável. E não era o caso, evidentemente. Dona Flor atravessava o povo no rastro de dona Norma a abrir caminho com os cotovelos e com sua extensa popularidade:
- Vai, arreda minha gente, deixa a pobre passar . . .
Lá estava Vadinho no chão de paralelepípedos, a bôca sorrindo, todo branco e loiro, todo cheio de paz e de inocência. Dona Flor ficou um instante parada, a contemplá-lo como se demorasse a reconhecer o marido ou talvez, mais provàvelmente, a aceitar o fato, agora indiscutível, de sua morte. Mas foi só um instante. Com um berro arrancado do fundo das entranhas, atirou-se sôbre Vadinho, agarrou-se ao corpo imóvel, a beijar-lhe os cabelos, o rosto pintado de carmim, os olhos abertos, o atrevido bigode, a bôca morta, para sempre morta.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Espaço Ponto de Vista: O debate dos Presidenciáveis


A Rede Bandeirantes de televisão promoverá na noite desta quinta-feira o primeiro debate entre os candidatos à Presidência da República. Após um curto corpo-a-corpo pelas principais capitais do país, os candidatos, agora, têm a missão de convencer os eleitores, através da TV, esclarecendo seus programas de governo e, principalmente, promoverão aquela velha baixaria de acusações.
Quanto aos três principais candidatos – Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva –, gostaria de tecer algumas considerações, pois ao meu olhar, nenhum desses candidatos inspira a confiança mínima para dirigirem o Brasil.
A candidata Dilma Rousseff representa a continuação de tudo o que foi visto no governo Lula: mensalões, escândalos dos mais variados, corrupção por todos os lados, bolsas diversas para os ‘carentes’ (ou compra de votos?) e, principalmente, a omissão do Chefe do Executivo. Na minha opinião, o que mais marcou os oito anos de governo Lula foi a omissão do presidente nos principais escândalos envolvendo os seus comparsas, José Dirceu, José Genuíno..., e assim por diante. E sempre o nosso presidente procurou preservar a sua imagem de pobre e honesto, marcas de sua elegibilidade, mesmo que as circunstâncias estampassem claramente o seu envolvimento nos escândalos. Além de tudo isso, a candidata Dilma Rousseff tem um estilo próprio de se portar, a sua arrogância; característica de quem já matou – tendo como causa o já batido militarismo – para conseguir o privilégio do poder. A luta foi sua ou foi pelo Brasil? Eis a pergunta que não quer calar.
Já o candidato do PSDB, José Serra, parece, mais uma vez, que ficará a ver navios. Os principais meios de comunicação, desde cedo, já estão manipulando a opinião pública e dando como certa a vitória de Dilma. José Serra representa o conservadorismo político que ficou ausente nesses oitos anos de governo do PT, assim quer virar a mesa e fazer com que seus asseclas voltem a tomar conta da direção do país. Sua presença no Palácio da Alvorada beneficiaria muito mais os grandes empresários do país em detrimento aos interesses do povo em geral. O desemprego, marcas do governo FHC, quando da criação do Plano Real, restaria ainda mais fortalecido, pois no jogo com a economia do país – e economia significa interesses do setor privado – José Serra e seu ministro dariam ampla preferência aos interesses alheios alegando o equilíbrio de toda a economia. E quem é que entende de economia? Poucos. Para o povão, se a moeda não desvalorizar e se os preços do mercado estiverem os mesmos, como no mês passado, está ótimo, como aconteceu no Plano Real. Portanto, José Serra e o PSDB têm força política, mas não é a pessoa certa – e nem o partido – para equilibrar os interesses do povo e dos empresários.
E por fim, Marina Silva do PV ganha disparada em simpatia, mas perde contundente no mal vestir (imagem de pobre?)... Brincadeiras pra depois, Marina Silva, como o próprio sobrenome, significa a representação do genérico, do comum, do povão. Tem bons projetos de governo, principalmente os ambientais, mas não tem força política, muito menos experiência nos mistérios da governança. Sua presença no Palácio da Alvorada poderia significar uma grave desarmonia política no Congresso e, talvez, tornaria seu governo muito mais difícil. Talvez fosse a candidata ideal do povo, como nos deu a falsa ilusão a do presidente Lula, mas não joga mais no PT, agora a candidata é do PV, um partido muito modesto e que não tem o apoio das principais lideranças do país. Portanto Marina Silva, mulher trabalhadora, que até os seus quinze anos era analfabeta, neste momento, não representa os interesses do povo brasileiro, pois o seu partido (ou governo? Eis a grande questão?) não distribui dinheiro por aí, não fala gratuitamente em bucho cheio, pois sabe que o problema do país está muito além da esmola, está na falta de vergonha.
Pra finalizar, vocês devem estar se perguntando, mas qual é o candidato ideal pra esse sujeito? Respondo com um ‘não sei’ bem grande, pois por tudo o que nos foi fornecido, na minha modesta opinião, eu sei bem quem não deve receber a faixa presidencial. É o preço da democracia. É o preço do atraso. É o preço de nossa eterna colônia.

- Por Franco Aldo, Rio, 05 de agosto de 2010 -.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Espaço Literatura (Conto): O Aposentado


Quando se passa dos cinqüenta, as coisas tendem sempre a piorar. Uma dorzinha a mais pra dificultar, os cabelos brancos pra disfarçar, os gastos com remédios caríssimos, a mesada recebida pelo INSS e o mais triste de todos, o tratamento marginal indiferente recebido pela sociedade. E por falar em mau tratamento, começa desde a hora do despertar – pois nós idosos dormimos pouco – e já existirá alguém pra reclamar ou se for boa praça criticar: ‘Por que velho acorda tão cedo!’, ‘Lá vai aquele velho chato varrer a calçada’, ‘Ô menino, tá com mania de velho, acordando tão cedo!’. Depois vêm as outras horas do dia. Na hora do almoço, por exemplo, a comida tem que ser especial, sem sal, sem gordura, muita salada. Aquela comidinha chata, rica em nutrientes que ninguém gosta de comer e quem não come, também não gosta de preparar. Ainda no seio familiar, tem aqueles momentos em que o velho põe em prática sua experiência de vida, prevendo todas as situações que antes já passara. Se for bom, consente com um sorriso de dentes falsos. Se for problema na certa, se intromete no assunto e toma aquela patada do filho, da filha, do neto... Vida de velho é assim mesmo. Todos nos tratam como se fôssemos um traste velho. Nem os nossos filhos se interessam mais. Querem é viver as suas vidas, gozá-las como nós gozamos as nossas quando jovens. Velhice pro jovem é a morte de tudo; da alegria, da beleza, da saúde, da lucidez. Alguns pontos até concordo, outros, porém, não. Velho tem que ter direito aos poucos dias de vida que ainda lhe restam. Tem o direito de entrar nos coletivos sem mostrar a carteira de idoso. Por falar nisso, uma vez, eu estava sentado num coletivo, quando o motorista parou num ponto. Subiu um senhor que aparentava ter uns, digamos, noventa anos. Quase não conseguia andar. O motorista, porém, não deixou o pobre velho seguir viagem, simplesmente porque não tinha a maldita carteirinha! Coisa que não prova nada. Onde já se viu, papel novo com poucos dias de tintura e fabricação ter mais valor que a pele murcha e acabada de um velho com mais de cinqüenta anos!
O velho fica mais velho quando se aposenta. Êta palavrinha definhadora! Quando se é ainda jovem, já aposentado, procura-se no sujeito algo que denuncie algumas décadas a mais. Alguém preconceituoso dirá: ‘Nossa..., você viu aquele velho com cara de novo... Inteirinho!’ Mas quando se faz cinqüenta, e se já for aposentado, só faltará a lápide para se sepultar de vez. Se ainda trabalhar, será motivo de reclamação de muita gente. O colega de escritório dirá: ‘Não liga não, ele já está gagá’, ou então: ‘Seu Claudecir tá demorando muito, ô tranqueira de velho!’ Assim prosseguirá o velho, guardando para si a sapiência dos anos, os mistérios das enrascadas da vida, do amor, da política, a experiência no contato com as pessoas, que de tão frustrada, se convence que não convence a mais ninguém. E pra quê tudo isso? Pra nada! Ninguém quer saber de história de velho, aliás, os únicos ainda que se animam a escutá-las são os netinhos de pequena idade para depois poderem desfrutar das balas e doces conseguidos do dinheiro dado. O jovem não escuta mais aos velhos, como não escuta, também, os discos de vinil encalhados no quarto da bagunça.
O sofrimento não pára por aí. Na fila do ônibus, por exemplo, se a porta da frente for aberta antes da de trás, onde entram os passageiros pagantes, ouvirá sempre alguém dizer, mesmo se for com os olhos: ‘Mas já acabou os assentos, tudo culpa desses velhos inúteis!’ Posso até estar exagerando, mas tenho razão, pois jogo no mesmo time, e só sou respeitado, quando não dou trabalho pra ninguém.
Hoje em dia a preocupação com o idoso é constante. Será mesmo? Nos bancos, existe aquele caixa preferencial, um apenas. Bom? A fila desse caixa fica maior do que a do caixa para os jovens. É muito velho na fila – Tenho lá minhas dúvidas quando se falam que o Brasil é um país de jovens –. E o que mudou em tudo isso? Nada. Apenas ficamos mais e mais discriminados. Preferiria encarar a fila dos normais, pelo menos ninguém, talvez, percebesse a presença de um velho de pernas cheias de varizes a aguardar a vez.
E nos supermercados? Outro dia fui até ao de esquina comprar chá de erva-doce. Adoro chá – coisa de velho? Que seja! – Quando fui pagar no caixa exclusivo, que dizia com letras bem grandes “CAIXA PREFERENCIAL PARA IDOSOS E GESTANTES”, um sujeito moço de uns vinte e tantos estava despejando todo o seu carrinho cheio no balcão do caixa. Iria demorar alguns e lentos minutos. Fiquei na fila para provocar alguma reação de alguém, e nada. A caixa, mulher gorda e bigoduda, olhava somente as compras com olhos de peixe-morto – digitava os preços e pensava na novela das oito –. Quanto a mim, parecia invisível; eu e as minhas caixinhas de chá. Cena lamentável. Mas para o meu consolo, o caixa ao lado, caixa de dez volumes, recebia de uma mulher um carrinho lotado de tranqueiras de perfumaria. Fiquei um pouco mais satisfeito, pois percebi que o supermercado era indiferente não somente com os idosos, mas a tudo. Com custo chegou a minha vez de pagar; perna já inchada e cansada. A caixa com olhos de peixe-morto continuava de cabeça baixa, uma vez ou outra perguntava à outra caixa sobre alguma fofoca esquecida. E eu ali com minhas caixinhas de chá...
Depois dos cinqüenta, muita coisa de ruim acontece com você. Muita gente pensa que você tá morto, não serve mais pra nada. É aí que você surpreende a todos eles!...
Esses rápidos pensamentos se esgotaram antes mesmo que seu Claudecir conseguisse chegar à boca do caixa para receber o dinheiro de sua aposentadoria. Foi aí que se sentiu mais vivo e mais jovem do que nunca; passou uma morena de saia justa e transparente, onde se via a minúscula calcinha perdida dentro de uma imensidão obscura. Seu Claudecir estufou o peito e gritou pros funcionários do banco: – “Vocês não tem respeito com os mais velhos! Nós não estamos mortos não!”.



Contos de Botequim.(Silfra Doval, Taubaté, 16 de julho de 2005).